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Sobre a arte do encontro: processos de distensões em partilhas sensíveis
28.03.2014
Relato do Encontro Aberto da 31ª Bienal em Porto Alegre, em 7/11/2013, por Michelle Sommer.

Qual o lugar de oposição fundamental entre o sensível e o inteligível?1 Quais são as competências específicas para a construção do pensamento na arte? Haveria algum?

As justificativas são sempre tentativas de definição dos limites das contribuições de cada domínio, na própria dinâmica de disputas internas do campo artístico. Porém, são nos limites estabelecidos pelas disciplinas que se encontram os pontos estratégicos das possíveis confluências de pensamentos, onde as florescências – contextualizando a primavera, estação do ano na qual ocorreu o encontro aberto da 31ª Bienal de São Paulo / Porto Alegre - podem acontecer. É nos interstícios que emerge um terreno para a elaboração de novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração. No encontro, ao propiciar situações de borda, de contaminação de limites, ao invés de restringir pontos de contato, a opção é por potencializá-los.

Os atores sociais envolvidos na troca, um grupo inter/multi/cross/trans, configuram pares familiares no contexto local. Na contaminação das disciplinas, uma afirmação: é destino do campo da arte romper fronteiras (inclusive especular sobre as possibilidades de ruptura das fronteiras físicas), interagir com outras áreas da vida social, abrir-se para inserção de outros atores, questionar o presente, ir além. Essa interface entre o inter/multi/cross/trans, tão explorada na abordagem sociológica, política, econômica, está contemplada também em uma perspectiva estética nas discussões que concernem à arte contemporânea?

Se existe uma intenção curatorial na proposição de um encontro, a sua recepção depende também, em paralelo e em simultâneo, de uma intenção dos “convidados” de “deixar-se implicar” com e pelo encontro. A implicação com o outro e com a arte significa uma mobilização de afetividade.

No processo de construção de eventos expositivos, talvez as “novas potências” da arte possam estar no potencial de contribuição de cada figura e não mais na figura exclusiva de um “líder” (ou de um curador ou curadores, para tratar aqui desse catalisador fundamental em exposições). A diluição da “potência” centralizada na figura do curador pode ser geradora de um modelo de compartilhamento que é também estendido ao espectador, propenso à comunicação, simultaneamente narrador e tradutor. Assim como as obras de arte, espectadores são pontos de altíssima densidade informativa. Na relação entre as partes no encontro, na informação gerada nos pontos de distanciamento e aproximação, torna-se possível especular sobre a modificação da natureza do conjunto e, talvez, possibilitar a construção de mudanças significativas em um contexto de exposição através da infinidade de relações possíveis entre os componentes.

No regime estético proposto por Rancière (2009)2 , a arte é identificada com o singular e está desvinculada de toda a regra específica, de toda a hierarquia dos sujeitos, dos gêneros e das artes. Na arte do encontro, na disponibilidade mútua (curadoria-espectador) reside a configuração de um modelo de articulação entre maneiras de fazer e pensamentos sobre formas de visibilidade dessas maneiras de fazer, inclusive em reflexões sobre como tornar vísivel esses processos.

É o olhar do outro, o olhar estrangeiro, o outro olhar das instâncias locais, que possibilita o cercamento das inquietudes e tensões do nosso tempo. É a valorização da importância do contexto concomitante à valorização do tempo presente. No encontro, configurado em uma situação de errância - entendido aqui como a capacidade de cada figura de transportar-se para o lugar do outro, sem precisar “precisar” um destino, ou ter uma resposta - não fomos apresentados a algo (no caso, a um projeto curatorial expositivo em um modelo fechado e vertical). Se na arte o nosso anseio crescente é a experiência estética e a obtenção de respostas para o “des-velamento” dos sentidos3, quando nos deparamos com uma inversão do “recebimento” de uma proposição curatorial para a indagação do que ela consiste hoje, nos são oferecidas perguntas. Na inversão, os estranhamentos: está no nosso DNA o princípio hegeliano da ideia de uma arte autossuficiente ou uma arte que comunica por si só suas intenções como um “desocultamento da verdade”, um dos grandes mitos da modernidade que inevitavelmente temos a tendência em perpetuá-lo. Somos surpreendidos quando não há respostas: no tempo presente, estamos todos invadidos por perguntas.

How soon is now?

Na ausência de respostas também algo nos é dito. Talvez que nunca seja possível concluir o impulso que nos vemos suscitados a iniciar, e a certeza de que o “nunca” e esse “vazio” podem também ser componentes integrantes da experiência. Nas incertezas e perguntas a partir das situações limites que presenciamos em profundidade e extensão no contexto político e econômico, uma dificuldade de reflexão sobre o tempo presente. O aqui e o agora é constituído pelo antigo, pelas “acumulações tradicionais”, do “passado carregado de agoras”, como nos lembra Benjamin (1994)4. E hoje, na arte, isso está também refletido tanto nas propostas curatoriais como nas propostas artísticas que se encontram desafiadas a evocar um “sentimento de presença”, essa ideia do “aí”5 nos trabalhos e nas exposições.

Nas relações entre estética e política, um comum partilhado (e partes exclusivas). A crise de sentido nas representações (principalmente as institucionalizadas), configuradas em ações antecedentes que eclodiram nas ruas do Brasil nos eventos de junho, implicam no abandono das crenças sobre as organizações como vanguarda das massas6. Essa discussão está inserida na arte, na nossa sociedade de consumo ávida pelo “espetáculo global” (não raro encenando-se também nas grandes exposições)7: as crises de representações políticas estão muito próximas das crises de apresentações na arte (principalmente as apresentações institucionalizadas). E os modelos expositivos bienais estão inseridos nessa esfera da institucionalização. Como possibilitar mudanças estruturais em bienais com o paralelo da responsabilidade sobre as continuidades?

Uncanny (ou quando o familiar torna-se estranho e o estranho torna-se familiar)8

Algo está entre estranho e familiar, que consegue ser visto como próximo e ao mesmo tempo se mostra como algo totalmente desconhecido: uma estranheza inquietante que fascina pela presença da ausência de objetividade na relação de abertura (o encontro). Esse sentimento compartilhado dá-se no âmbito dos pares, do familiar com familiaridades - aqui com um duplo sentido: uma aporia, como um sentido claro e exposto do familiar e simultaneamente com o sentido oculto do característico de tudo aquilo que não pertence à família, como a figura do outro, daquele que vem de fora.

O pensamento sobre as possibilidades de reconfiguração de tradicionais modelos expositivos passa pela prática curatorial da aproximação, do compartilhamento, da disponibilidade para a fala e a escuta na arte generosa do encontro. Um ponto de partida baseado na igualdade para possíveis outras construções, que podem já estar nas próprias transformações das formas de relação. A igualdade é fundamental e ausente, ela é atual e intempestiva, sempre dependendo da iniciativa de indivíduos e grupos que, contra o curso natural das coisas, assumem o risco de verificá-la, de inventar as formas, individuais ou coletivas, de sua verificação9.

No tempo presente da dúvida, enquanto observamos, discutimos e nos aventuramos a agir, entendemos que a arte é também um processo de reflexão. Se curar é compartilhar, temos à vista um possível deslizamento, há muito ansiado, para a horizontalidade.

texto: Michelle Sommer

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Notas

1 Em referência ao conceito de “partilha do sensível” [partage du sensible]: “Pelo termo de constituição estética deve-se entender aqui a partilha do sensível que dá forma à comunidade. Partilha significa duas coisas: a participação em conjunto comum e, inversamente, a separação, a distribuição em quinhões. Uma partilha do sensível é, portanto, o modo como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas”. RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. São Paulo: Editora 34, Coleção Trans, 1995, p. 7.

2 RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. Rio de Janeiro: Editora 34 Ltda., 2009.

3 O visível é para Derrida o lugar da oposição fundamental entre o sensível e o inteligível, a noite e o dia, a luz e a sombra. Ele tem por base todos os valores do aparecer ontológico e fenomenológico – o fenômeno (phanesthai), a teoria (theorein), a evidência, a clareza ou a verdade, o “des-velamento” – que instituem uma forte hierarquia filosófica dos sentidos. Consequentemente o visível será desde então denunciado por Derrida a cada vez que esse privilégio do óptico for posto como a questão que domina toda a história da metafísica ocidental. DERRIDA, J. Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Florianópolis: Editora da UFSC, 2012.

4 BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História. Walter Benjamin: obras escolhidas, v. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e História da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 7 edição, 1994.

5 Derrida nomeia “aí” o sentimento de presença tomado a partir de o Ser o Tempo, e nomeia o ser irredutivelmente deslocado espacialmente, não presente em si mesmo ou dado como ser, mas aberto, aí.

6 Sobre os eventos de junho no Brasil: ?I?EK, S. Problemas no Paraíso. Blog da Boitempo, julho de 2013. http://blogdaboitempo.com.br/2013/07/05/problemas-no-paraiso-artigo-de-slavoj-zizek-sobre-as-manifestacoes-que-tomaram-as-ruas-do-brasil/, acessado em 03/11/2013. NUNES, R. G. O partido do evento. Revista Forum, outubro de 2013. http://revistaforum.com.br/blog/2013/10/o-partido-do-evento/, acessado em 03/11/2013.

7No nível de consumo, esse novo espírito é o do chamado “capitalismo cultural”: fundamentalmente, compramos mercadorias não pela utilidade ou pelo símbolo de status; compramos para ter a experiência que oferecem, consumimos para tornar a vida mais prazerosa e significativa. (...) É assim que o capitalismo, no nível do consumo, incorpora a herança de 68, a crítica do consumo alienada: a experiência autêntica tem importância. A sociedade pluralista de consumo, ávida pelo “espetáculo global”, encenando em grandes exposições concebidas por curadorias de renomados museus do Ocidente metropolitano”. ?I?EK, S. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. Pág. 53-54.

8 A combinação do conhecido e familiar com o estranho está presente na palavra alemã equivalente a uncanny, unheimliche. O termo foi proposto por Freud em 1912, em seu ensaio “Das Unheimlich” e refere-se aquilo que é oculto, o que está de certa forma preservado, guardado, retido, o que é velado e desvelado alternadamente: a revelação do inesperado. Unheimlich é aquilo que é exposto, que se expõe, é exteriorizado, se exterioriza, é trazido à luz. O estranhamento familiar também pode ser entendido com uma poderosa metáfora para a condição humana do desamparo.

9 RANCIÈRE, J. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 16.

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