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Conversas sobre uma Bienal
28.03.2014
Relato do Encontro Aberto da 31ª Bienal em Fortaleza, em 7/11/2013, por Luciana Eloy.

A convite da equipe envolvida na realização da 31ª Bienal de São Paulo, realizou-se dia 7 de novembro na reitoria da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) um encontro entre três dos curadores (Charles Esche e Galit Eilat e o curador associado Benjamin Seroussi) e atores locais da cultura e das artes com a intenção de refletir sobre a próxima Bienal a partir do que está acontecendo aqui e agora no Ceará.


Essa ação parte de uma estratégia dos curadores, que pretendem circular por diversas partes do Brasil para pesquisar material para a 31ª Bienal de São Paulo. Em Fortaleza o encontro contou com a participação de artistas, pesquisadores, educadores, galeristas, gestores da cultura, que ofereceram suas contribuições num diálogo vivo e crítico sobre o atual contexto da Bienal e da produção contemporânea do Ceará. Como participante desse diálogo e a convite da Unifor, me coloco como interlocutora na intenção de apresentar um panorama das questões que emergiram na discussão, procurando dar ênfase às reflexões mais profundas que derivaram do circuito momentâneo que ali se formou.

Inicialmente a discussão apontou para a desfavorável condição política e cultural em torno das produções artísticas periféricas ao eixo hegemônico Rio-São Paulo. Esta era uma ideia que circulava em espiral entre as questões levantadas e sempre voltava a se apresentar como preocupação principal da discussão.

Vinculada à crítica ao sistema de artes hegemônico e globalizado que elege a produção a ser vista no Brasil, a seguinte pergunta foi diversas vezes levantada: como a equipe de curadores se propõe a conhecer essa produção periférica que não circula fora do Ceará e, portanto, não se iguala à produção da superfície hegemônica e globalizada?

A grande crítica que passou a permear a discussão por parte dos convidados dizia respeito à descrença nesse sistema hegemônico que originou e que sustenta a própria Bienal de São Paulo – uma instituição que nasceu nos anos 50, no maior centro econômico do país como produto cultural desse mesmo meio, com o interesse de consolidar e divulgar a arte moderna brasileira na cena artística internacional e inserir São Paulo na esfera dos grandes centros artísticos mundiais. Dessa crítica deriva o interesse em saber como essa instituição que atravessou o modernismo brasileiro e ainda na contemporaneidade é vista como produto do sistema hegemônico se coloca no lugar de entender como é possível produzir arte de outra maneira.

Os curadores manifestaram suas preocupações em torno dessas questões, mas nitidamente não pareciam ter as respostas. Estavam ali para traçar um diálogo, no qual era evidenciada uma boa intenção de descobrir meios e estratégias para enfrentar essa assimetria e a grande distância entre as produções artísticas do Brasil. A partir de então, aparentemente toda a discussão passou a girar em torno dessa questão: como construir uma mensagem para uma Bienal levando em consideração a produção de um país de múltiplas fronteiras internas, que é hegemônico, mas também periférico? E principalmente: como questionar isso estando dentro desse mesmo sistema?

Outros problemas enfrentados por aqui foram também mencionados, como a falta de incentivos financeiros, o mercado incipiente e as poucas galerias, insuficientes para absorver a produção local. Porém, ficou claro que o maior obstáculo estava de fato na ausência de instituições fortes, interessadas pela formação crítica do artista e do público, capazes de promover um debate e de atualizar a produção.

De acordo com Eduardo Frota, um dos artistas presentes nesse diálogo, o que falta é a “boa instituição”, pois as instituições locais são incapazes de objetivar o sistema de arte, com ressalva ao Centro Cultural Banco do Nordeste e o Dança no Andar de Cima, que atualmente promovem programas de acompanhamento de jovens artistas, estão abertas a experimentações e cobrem as lacunas deixadas pelos cursos de arte e por outras instituições da cultura. Frota fez referência ao Alpendre como exemplo de uma ação coletiva que buscou aproximar a produção artística e sua relação crítica com o circuito de arte. Um ambiente vivo e propositor, o Alpendre nasceu da necessidade de subverter o sistema na falta das “boas instituições”. Era um lugar aberto à experiência, com biblioteca, grupos de estudo e cursos periódicos, que agregava diversas linguagens contemporâneas: artes visuais, dança, vídeo, performance, deu visibilidade a essa produção e fez circular a informação.

Vejo que esse exemplo do Alpendre se encaixa bem na resposta dada por Charles Esche diante das preocupações de Frota. Ele acredita que as ações devem ser feitas alinhadas a uma mensagem e que o problema não está na falta de recursos financeiros, de instituições ou de mercado, mas essencialmente na falta de uma política cultural coerente. Esche acrescentou que existem várias maneiras de se desenvolver uma política cultural, podendo acontecer de cima para baixo ou de baixo para cima.

A discussão que até então se concentrava em criticar a desfavorável situação da política cultural local em relação ao eixo Rio-São Paulo, se deslocou para outra geografia: a situação da produção brasileira em relação ao resto do mundo. Isso trouxe de volta o foco para a Bienal. Sobre ela, Esche tem consciência das deficiências e do modelo ultrapassado, mas acredita que a próxima edição pode ser pensada como ferramenta de grande potência, dependendo da forma como for usada. Tal comentário, porém, não convenceu o artista Sólon Ribeiro, que acha o conceito de Bienal completamente superado e modernista, além de muito pequeno para o Brasil, um país que, em sua opinião, é o mais preparado para desenvolver “conteúdo de arte” hoje.

A esse respeito, Esche parece concordar com Sólon e se posicionou como alguém que conhece bem duas fases da produção artística brasileira, quando lembra que até a década de 1980 nossa produção não era reconhecida no exterior, mas hoje essa realidade mudou e ganhou outra dimensão, pois agora se procura ouvir o que o Brasil tem a dizer. Este, portanto, parece ser o desfio da equipe curatorial: tornar essa reflexão possível. O que leva Esche a penetrar numa questão paradoxal que ele próprio deixa evidente ser a questão chave para pensar essa Bienal: como ativar reflexões e produzir significados que partem do local e se refletem no global?

Atravessar esse paradoxo é um problema com o qual a curadoria vai ter que lidar. E sobre isso Esche afirma que faz parte de seu papel encontrar as possibilidades de lidar com o problema e entendê-lo como algo que supera a lógica do sistema de arte. A questão do local e do global provocou ainda mais questionamentos entre os convidados, que não pareciam estar convencidos da eficácia dessa estratégia da curadoria. Sólon Ribeiro disse não entender essa lógica do local e do global, pois hoje mora em Fortaleza e na China, e Eduardo Frota pensa que qualquer ato do fenômeno artístico já é paradoxal em si – para ele, a questão do local e do global é um confronto do mundo hegemônico.

Ambos, Sólon e Frota pensam que esse paradoxo precisa se desconstruir, pois a questão do “local e global” é um discurso requentado e ineficaz e oferece vários riscos diante do pouco tempo que a equipe de curadores tem para realmente penetrar nas questões profundas que a produção brasileira enfrenta. Alertaram para a situação do Ceará, como um estado que está inserido numa região semi-árida, um local de “não-existência” dentro do Brasil marcado por problemas severos de ordem climática e social, mas que ainda assim se constrói na história como um terreno fértil e de grande potencial para a manifestação de diversas linguagens artísticas. Pensar como o local reflete no global já se inicia como um paradoxo dentro do próprio país, pois o Brasil não possui um mecanismo de arte que dê conta da multiplicidade de coisas que estão acontecendo. São questões difíceis de entender a partir de São Paulo, pois nem São Paulo entende o Brasil.

Essas são questões importantes para problematizar uma Bienal que deseja conhecer a produção desse vasto território multicultural que é o Brasil. Pensar essa realidade local requer tempo para ouvir os artistas, para conhecer a produção e para estabelecer as parcerias entre artistas. Tal preocupação ecoou na reunião e voltou a ser ouvida nas conversas que surgiram na cidade após o encontro. A equipe de curadores respondeu as duras criticas direcionadas à questão do “local e do global” sustentando que a riqueza desse paradoxo está na própria insolubilidade dele. Seus elementos contraditórios são duas verdades que não se destroem e possuem a potência de produzir saberes. Eles imaginam que desse novo espaço criado para se pensar a Bienal pode surgir um novo paradigma e o momento atual é muito propício para isso, pois o mundo se volta para o Brasil. Charles Esche parece ter sua própria pista desse novo contexto sobre o qual acrescenta poder ser “um fluxo que dá lugar a uma espécie de brasilização no lugar de uma globalização”.

César Baio, professor do mestrado em artes e do núcleo de cinema da UFC, encerrou a fala dos convidados deixando uma pergunta para reflexão que acredita ser o grande desafio aos curadores: como pessoas que estão de fora serão capazes de fazer conexões estéticas e poéticas sem que isso se perca ou fique na epiderme da exotização? Uma ideia que ficou bastante clara deixada pela equipe curatorial foi o desejo pelo diálogo e por formas possíveis para se pensar uma Bienal como algo em construção. Nesse encontro percebi nos curadores suas intenções genuínas em construir esse lugar sem medo de poder falar de coisas que ainda não existem. Receberam duras críticas, foram sucessivamente confrontados por questões que apontavam para as fragilidades de suas propostas, mas se mostraram sempre abertos às ideias, uma atitude alinhada à proposta inicial dessa conversa: para eles não seria possível propor uma estrutura condizente com a Bienal sem esse conhecimento prévio. E a melhor maneira de pensar estratégias começa com uma boa conversa.

Bienais são polêmicas e tem sido assim ao longo da história dessa instituição. Um exemplo foi a 10ª Bienal de São Paulo, marcada pelo boicote que levou artistas, intelectuais brasileiros e de outros países a se recusarem de participar, como protesto ao regime militar dominante em 1969, fato que deu a ela o nome de “Bienal do boicote”. Sobre ela temos a brilhante crítica feita por Roberto Pontual, um dos maiores críticos de arte que já passou pelo Brasil. No artigo Bienal: mudar e não morrer, ele denuncia a total ausência de contemporaneidade, e acusa ser o maior mal da Bienal de São Paulo “sua falta de correspondência com os vários planos da realidade do Brasil e do mundo contemporâneo”.

Pontual já falava da necessidade de aproximar o presente, o passado e o futuro, o nacional e o internacional como elementos indissociáveis das múltiplas tendências da arte contemporânea. Suas ações foram determinantes no processo de internacionalização da arte brasileira e da América Latina. Um exemplo desse esforço pode ser apontado com sua curadoria da mostra Geometria Sensível realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM-RJ, em 1978, em que reuniu diversos artistas latinos americanos no sentido de mostrar traços comuns entre a arte construtiva produzida no Brasil e na América Latina, marcada por elementos opostos: o exercício da razão e a imprevisibilidade do gesto intuitivo. Uma mostra que se articulou como exercício crítico sobre a produção da América Latina ante o sistema internacional de arte. Além de realizar exposições significantes, Pontual se dedicou a problematizar a questão da internacionalização em diversos artigos e textos críticos, como “O olhar do velho mundo sobre o novo”, apresentado no colóquio “Force critique: nature, role et function” em Aix en Provence, França em 1989, no qual o autor discute as dificuldades enfrentadas pela produção artística da America Latina para se inserir no circuito internacional. Essa e muitas outras relevantes contribuições de Pontual podem ser encontradas no livro Roberto Pontual Obra Crítica, organizado por Izabela Pucu e Jacqueline Medeiros.

Diante das discussões e das múltiplas ideias surgidas nesse encontro entre os curadores da Bienal e convidados do Ceará, deixo uma mensagem de Roberto Pontual que me parece perfeita para traduzir o sentido desse encontro: “Aqui não interessa quem venceu ou perdeu, e sim os benefícios da luta”. E nessa discussão o que enxergo como benefício inicial é o fato da equipe de curadores se colocar na posição de conhecer a visão de quem está de fora, procurar perceber o que acontece em espaços que ainda não estão mapeados, conhecer uma produção que ainda não está inserida no circuito nacional e que sabe a partir dessas falas poder encontrar respostas para criar a próxima Bienal de São Paulo.

texto: Luciana Eloy

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