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Novas tentativas de reduzir distâncias
01.04.2014
Relato do Encontro Aberto da 31ª Bienal em Recife, em 13/11/2013, por Olívia Mindêlo

Como paradigma, a arte contemporânea se nutre de utopias e discursos. Ideais como livre acesso e dissolução de fronteiras entre arte e vida, e entre público e obra figuram historicamente como alguns desses alimentos. Sob tal ponto de vista, e por outras razões, é no mínimo esperado que estar ao alcance de todos, por exemplo, venha sendo uma aspiração constante da Bienal de São Paulo desde sua criação, em 1951. Uma sede tão recorrente quanto a própria realização da grande mostra, ainda que sua história seja uma interseção entre a arte moderna e a contemporânea.

Como registrou o crítico Mário Pedrosa1, da Bienal de São Paulo, havia um sonho desde o começo: colocar a Bienal, e as produções representadas nela, no epicentro dos acontecimentos paulistanos (e brasileiros, consequentemente), consonantes com seu projeto de modernidade. Em outras palavras, fazer da mostra um evento superlativo – em obras, em espectadores, em dimensão. Cerca de dez anos depois, a Bienal havia não só amadurecido essas ideias, como assimilado as bandeiras da neovanguarda artística da década de 1960 no Brasil, idealizadas por nomes como Hélio Oiticica, Ferreira Gullar e o próprio Pedrosa. Em boa parte, foram questões que viriam abrir caminho para o início da chamada arte contemporânea brasileira. A utopia norteadora dessa geração: uma arte para o povo; coletiva, participativa, engajada, sem pompas nem pedestal.

Para Artur Danto2, o “momento contemporâneo da arte” ou “pós-histórico” é pontuado por um “profundo pluralismo e total tolerância”, onde “nada está excluído”. Como afirmava o anúncio publicitário da 29ª Bienal de São Paulo, em 2010:3 “A arte não exclui. Só inclui”. Discursos semelhantes ecoam a cada dois anos no Pavilhão do Ibirapuera. Seja para atrair público, sustentar a realização da própria Bienal ou mesmo costurar projetos curatoriais, a partir de um amplo e diverso espectro de trabalhos artísticos. Mesmo em seu contínuo movimento camaleônico, certamente não houve uma só vez que a Bienal não escancarasse os verbos da inclusão – desde os ideais proferidos por Mário Pedrosa, em seu início, até a decisão de torná-la um evento com entrada gratuita, em 2004. Além de um ideal arraigado, este tem sido um propósito de sua execução; um norteamento institucional, tanto que a especulação em torno da quantidade de público vem se mostrando uma preocupação, um termômetro do “sucesso” (ou “insucesso”) de cada edição.

Já em curso, a 31ª edição também segue, de alguma maneira, essa trilha. Almeja chegar junto às pessoas, à cidade, ao entorno, alargando as fronteiras impostas pela própria lógica do campo artístico. Quer derrubar muros simbólicos e se encontrar com a própria vida – como no paradigma da arte contemporânea. Ainda em busca de um percurso próprio, este tem sido o fio condutor do projeto dos curadores da próxima edição. No entanto, parece que algo diferente vem se tecendo neste momento, mesmo sob um discurso já familiar. Durante o Encontro Aberto da Bienal no Espaço Fonte, no Recife, com a presença de dois dos cinco curadores – Charles Esche e Pablo Lafuente –, pudemos perceber uma inquietação que deve levar a Bienal de São Paulo a uma de suas versões mais experimentais, no sentido arriscado e imprevisível da palavra, questionando o próprio sentido de instituição arte e, portanto, a relação que esta mantém com seu público e “não-público”, já que a ideia é tornar elástica a própria ideia de Bienal e suas possibilidades de alcance.

Sim. Por ora, não sabemos aonde isso vai chegar. Nem mesmo a própria curadoria. O que se sabe é o caminho a seguir. E essa dose de imprevisibilidade se mostra interessante, porque é a alma de um verdadeiro projeto de pesquisa, o qual deve, a meu ver, farejar trilhas inacessadas, em vez de percorrer estradas predefinidas. Ou seja, se guiar também pelo inesperado, aceitar a riqueza do imprevisto. De forma reiterada, esse foi um desejo posto pela curadoria, reforçado ainda, na outra ponta, pela dispensa a um projeto curatorial pautado pelo “modelo de museu”, comumente adotado em bienais como a de Veneza ou Istambul, por exemplo. Aqui, não há por enquanto, um projeto expográfico desenhado, um tema prévio, um eixo ou uma lista de artistas selecionados. Neste momento, o método é experimentar o processo, mergulhar no cotidiano das cidades (brasileiras e de outros países, sobretudo latino-americanos), captar algo que, para eles, já se configura como a realização da própria Bienal.

Tal processo implica justamente uma abertura ao desconhecido; uma espécie de “se deixar levar” ou, na expressão mencionada por Pablo Lafuente, praticar o conceito de “turista aprendiz”, apropriado de Mário de Andrade. Traduzindo: mergulhar em um deslocamento não só espacial, mas simbólico, capaz de despi-los de estereótipos para, com um olhar estrangeiro (literalmente) – e inocente, até –, vestir-se de novas experiências, vivências e encontros. No Recife, eles se deixaram levar por um percurso conduzido pela curadora e crítica de arte contemporânea Cristiana Tejo, que rege o Espaço Fonte. Na analogia de Pablo, uma porta de entrada a esse desconhecido, o qual se colocaram dispostos a adentrar. O roteiro, inicialmente de cinco dias (eles pretendem voltar à cidade), não incluiu as tradicionais visitas a artistas e ateliês, apenas. Mas a pessoas e lugares com outras referências de organização que não somente artísticas. “Queremos falar com gente, não só com artistas ou curadores”, frisou Pablo no Encontro Aberto, inserido como parte fundamental de todas as visitas que a curadoria da 31ª Bienal tem feito às cidades.

O formato do encontro, aliás, dialogou com o “método da pesquisa” empreendido pelo projeto ao longo dessas visitas: uma roda na qual os curadores, querendo ou não figuras de poder no campo da arte, estavam mais dispostos a ouvir e a dialogar do que a palestrar – ou a levar uma dada verdade. O processo soou mais horizontal, na medida do possível, construído pela presença não só de artistas visuais e especialistas (embora fossem maioria), mas de “caras novas” em situações como esta, a exemplo de músicos, produtores culturais, arquitetos, cientistas sociais e profissionais de outros campos. Essas pessoas foram bastante participativas e colocaram aos curadores uma série de desafios, como pensar o contexto brasileiro de 2014, ano de Copa, eleições presidenciais e da “desilusão em pauta”, além da própria questão geopolítica e cultural do Brasil, em suas representações e manifestações. Afora debater, os “turistas aprendizes” buscaram, na cidade, contato com espaços como o Mercado de São José (bastante popular e turístico no Recife), por exemplo, e o movimento Direitos Urbanos, um dos principais contrapontos políticos à hegemonia urbanística da capital pernambucana atualmente (leia-se: especulação imobiliária, verticalização etc.).

Segundo os curadores, embora ainda não exista uma solução expositiva consonante com esse trajeto experimental, a ideia é buscar desenvolver mais projetos do que levar centenas de obras prontas ao pavilhão. Não importa se serão de autoria de um artista visual consagrado, um coreógrafo ou um pipoqueiro. Para eles, a grande questão é romper com a ideia de museu imbricada à realização demostras como a Bienal – mesmo que Francisco Alambert e Polyana Canhête4 definam “a era do Museu” como capítulo findado na história do evento paulistano. “Não queremos trabalhar uma memória. Isso é para o museu. Queremos ser este momento, caótico e marcado pela falta de controle, como é o mundo contemporâneo”. Eis um dos anúncios feitos pelo curador Charles Esche no encontro do Recife.

Não há como negar. Tudo isso desperta uma boa carga de curiosidade tanto quanto um anseio por discussão. Primeiro, é preciso reiterar que o desejo de inovação é parte intrínseca à história da Bienal de São Paulo, sobretudo desde que a figura do curador assumiu um papel preponderante. Não há novidade nisso. Em sua análise histórica, os próprios Alambert e Canhête5 já pontuam as transformações pelas quais a Bienal passou – ora encolhendo, devido a crises, ora agigantando-se. De fato, das 1.800 telas penduradas nas paredes que marcaram a primeira edição da mostra à proposta dinâmica de A iminência das poéticas, na 30ª edição (2012), existem muitas diferenças. Entretanto, quais foram essas mudanças? Como instituição arte, será que a Bienal não segue ainda atendendo a anseios próprios da modernidade à qual a arte contemporânea se opõe como paradigma? Será que a mostra tem sido, na prática, coerente com os preceitos da arte contemporânea – da qual se impõe como representante –, no sentido da dessacralização da arte e da sua aproximação com a vida, por exemplo? Para os curadores da próxima edição, decerto que não: o formato da Bienal de São Paulo ainda não condiz com o mundo contemporâneo – e suas experiências artísticas, políticas, cotidianas.

Eles não falam à toa; conhecem bem o abismo entre a obra de arte, e seu discurso, e as estratégias de um campo artístico fundado por pilares sacralizadores, hierárquicos e excludentes, os quais têm o museu, mesmo sob outras feições, como seu grande templo, seu maior baluarte. Se isso parece dissonante com o projeto contemporâneo, não há nada mais paradoxal (ou sintomático?) do que constatar que 86% dos visitantes espontâneos da Bienal de São Paulo, em 2010, tenham sido graduandos ou pessoas acima do nível superior no grau de escolaridade.6

A arte como privilégio de poucos instruídos é uma tendência construída sócio-historicamente, a partir da ideia de uma arte essencialista, à qual justamente o paradigma contemporâneo veio se opor. Além disso, o trabalho também mostrou que os amantes da dita produção contemporânea eram uma minoria (14%) ainda mais culta, ao mesmo tempo em que as razões que impulsionaram as visitas do público estudado não se ligavam diretamente à gratuidade do evento ou ao discurso inclusivo da Bienal. Grande parte do público era formada por pessoas iniciadas na arte, já propensas a frequentar mostras como esta. Os tais muros.

Nesse ponto, não tenho outra alternativa senão concordar com os curadores da 31ª edição: a Bienal ainda está erguida sob o símbolo do “museu”, o signo de um paradigma moderno. Tanto que: “a ‘massa’ que circulou pela Bienal não foi o povo de que falava Mário Pedrosa [...], foi uma ‘massa privilegiada’”,7 algo também mencionado no estudo de público de Bourdieu e Darbel,8 nos anos 1960; de Canclini,9 nos 1980; e de Cristina Freire,10 nos anos 1990. Ao que tudo indica, mesmo que a arte contemporânea cultive utopias libertadoras e democratizantes em seu discurso, mesmo que deseje escancarar as suas portas, ainda sujeita sua legitimação a aparatos institucionais semelhantes ao da cerca sagrada do projeto moderno de arte. E quer consagração ao mesmo tempo em que deseja ser acessível. Na história da arte, isso é um contrassenso, porque a aura da sagração traz implícita uma separação entre os que podem ou não alcançar isso.

Os curadores querem romper com esse paradoxo. Querem eliminar distâncias a partir de uma organização diferente. Não querem ver o mundo representado na Bienal, mas a Bienal inserida no mundo, dentro dele. Por isso, já preveem, como parte do projeto, o diálogo com as periferias paulistanas e pensam sobre como atrair frequentadores do próprio Parque do Ibirapuera para dentro do pavilhão, que talvez não seja o único espaço de ocupação do evento. Não há exatamente muita novidade nisso. Outras iniciativas já empreenderam estratégias de motivações semelhantes. No entanto, para uma Bienal que vive se equilibrando entre a ousadia e a conservação, um projeto que procura pensar novas possibilidades já é algo digno de atenção. Mais ainda, algo significativo, porque vai no cerne da questão: o modelo institucional ao qual a arte contemporânea se insere – no caso, com o peso de uma Bienal de São Paulo. Os encontros já são sintomas de que há, neste momento, não só um desejo de mudança, mas um percurso que desvia de um padrão. Agora é observar se esse processo já não se mostra mais rico do que o “resultado” expositivo cuja curadoria terá de mostrar em 2014. Inevitavelmente.

texto: Olívia Mindêlo

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Notas

1 APUD COUTO, Maria de Fátima Morethy. Por uma vanguarda nacional: a crítica brasileira em busca de uma identidade artística (1940-1960). Campinas: Editora da Unicamp, 2004.

2 DANTO, Artur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. Tradução de Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus editora e Edusp, 2006, p. XVI.

3 Folha de S. Paulo. São Paulo, 21 set. 2010. Bienal das Artes.

4 ALAMBERT, Francisco; CANHÊTE, Polyana. Bienais de São Paulo: da era do Museu à era dos curadores (1951-2001). São Paulo: Boitempo, 2004.

5 Idem.

6 MINDÊLO, Maria Olívia Medeiros. “A arte não exclui, só inclui”: a relação do público com a arte contemporânea na 29ª Bienal de São Paulo. Recife: o autor, 2011.

7 Idem, p. 146.

8 Em países europeus. BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. Tradução de Guilherme J. F. Teixeira. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Porto Alegre: Zouk, 2007.

9 No México. CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Heloísa P. Cintrão; Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Porto Alegre: Zouk, 1997 (Ensaios latino-americanos, 1).

10 No Brasil, em São Paulo. FREIRE, Cristina. “Museu. Público. Arte contemporânea. Um triângulo nem sempre amoroso”. ARTEunesp, São Paulo, n. 9, p. 131-146, 1993.

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