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A curadoria como etnografia
08.04.2014

A equipe de curadores da 31ª Bienal de São Paulo está viajando por algumas cidades do Brasil para discutir sua proposta, conhecer e conversar com pessoas envolvidas com arte nas diferentes regiões, o que é algo inédito, em se tratando da Bienal de São Paulo, mas absolutamente natural, se pensarmos que tornou-se uma prática comum os projetos curatoriais das mais diversas bienais e grandes exposições que ocorrem pelo mundo serem desenhados por equipes formadas por pessoas de origens múltiplas. Num certo sentido, vivemos na Bahia um processo análogo a este ao longo do último ano, pois durante a construção do projeto da 3ª Bienal da Bahia, Tudo é Nordeste, foram criadas diversas situações nas quais as pessoas envolvidas com a instituição queriam ouvir os representantes do mundo da arte local.

O que tornou o encontro em Salvador especialmente interessante foi o fato do tema - Como falar de coisas que não existem e da identidade visual terem sido divulgados naquele mesmo dia nas redes sociais sendo, portanto, a ocasião em que muitos dos presentes tiveram o primeiro contato com proposta da mostra. Ao que parece, ao sugerir o tema, os curadores estavam pensando na não existência de um ponto de vista simplesmente empírico, o que não causou estranhamento na audiência, que não demonstrou estar muito incomodada com a definição de existência ou questionou por que aceitar que ideias, sentimentos, esperanças, conceitos ou sonhos, entre outras coisas que não existem. Mas uma curadoria é uma prática enunciativa. Talvez o público não se dê conta deste aspecto, pois muitas vezes, quando visitamos uma Bienal, preferimos nos deixar seduzir pelas obras a ficar refletindo acerca da retórica da curadoria, a qual, contudo, estará lá: os curadores, de algum modo, vão falar sobre coisas que eles acham que não existem.

Mas logo somos informados que o verbo 'falar' será substituído por outros, ao longo da duração da Bienal: o tema da Bienal poderá passar a ser como pensar em coisas que não existem, ou como acreditar em coisas que não existem, e assim por diante, o que relativiza qualquer discussão acerca do tema, pois ele passa a ser algo transitório e difícil de ser apreendido, algo que escapa a um questionamento pois, a qualquer momento, ele pode virar uma outa coisa e toda rejeição - ou empatia - que eventualmente pudéssemos sentir por ele pode cair por terra.

Em um certo sentido, a preocupação dos curadores da 31ª Bienal de São Paulo repercute a questão colocada pela Bienal anterior, na medida em que seu curador, Luis Pérez-Oramas, também estava pensando em como dizer coisas. A questão que inquietava Oramas tinha a ver com a dimensão poética da arte: ele pretendia investigar “a necessidade de estruturar uma operação discursiva e enunciativa capaz de expressar algo através de aparatos artísticos hoje”1, a partir da percepção de que as artes visuais contemporâneas se alinham mais com o comentário e com a crítica, em detrimento daquilo que Merleau-Ponty teria chamado de “vozes do silêncio” e em contraposição ao tipo de poética proposta pelo modernismo, que lhe corresponde.

Assim como a linguagem em Merleau-Ponty, a arte moderna não pressupõe uma tabela de correspondência, seja com aquilo que existe, seja com aquilo que não existe: “sua opacidade, sua obstinada referência a si própria, suas retrospecções e seus fechamentos em si mesma são justamente o que faz dela um poder espiritual: pois torna-se por sua vez algo como um universo capaz de alojar em si as próprias coisas - depois de a ter transformado em sentido das coisas”2. E os curadores não pretendem cultuar a autonomia modernista, nem os pioneiros de nossa contemporaneidade.

O prédio do Museu de Arte da Bahia, com sua icônica escada é muito mais interessante que o óbvio prédio de Niemeyer, que se parece demais com qualquer outro museu do mundo, assim como os medalhões Oiticica, Clark e Pape não são mais “exóticos”. É preciso mostrar o que está acontecendo agora e, por isso, os curadores querem conversar para entender o contexto do país, querem saber onde estão pisando, mapear o território. Presumimos que os curadores, por serem estrangeiros, têm um olhar mais fresco para com o cenário local e ao mesmo tempo, identificamos com os homenzinhos do desenho de Prabhakar Pachpute, que precisam avançar sem poder ver o que está à sua volta.

Como falar sobre coisas que não existem aparece, no cartaz da próxima Bienal, juntamente a uma imagem que remete à Torre de Babel. Seria este um diálogo impossível? Como dialogam os curadores entre eles, tendo cada um uma origem diferente? Como eles dialogam com o Brasil e com a arte brasileira? Com uma curiosidade semelhante àquela dos etnógrafos, os curadores querem saber como é fazer arte em um lugar tão diferente daquilo que eles já conhecem e, por isso, vem a tona a espinhosa, ainda que divertida em alguns momentos, discussão acerca da identidade brasileira. Passa-se pelos inevitáveis clichês: a maleabilidade do brasileiro em aceitar o que é estranho, em acolher aquilo que não existe (aqui)... Pensar na antropofagia é inevitável, mas essa Bienal já foi feita.

Sem saber exatamente em que medida estas informações irão refletir no projeto curatorial da Bienal de São Paulo, tem início, imediatamente, uma discussão em torno da quase impossibilidade de ser artista numa cidade na qual não existe mercado de arte. A inexistência de um mercado de arte parece ser um problema muito mais grave do que o fato de Salvador ser uma das maiores cidades do país e possuir pouquíssimos espaços expositivos, onde são realizadas raríssimas exposições, onde quase não se encontram boas bibliotecas e livrarias especializadas em arte, onde praticamente não existem veículos na imprensa dedicados à arte e crítica de arte, enfim, uma cidade pobre em recursos capazes de aprofundar e adensar a produção de arte e a reflexão sobre ela. A despeito de toda esta precariedade, é a ausência de um mercado de arte aquilo que mais preocupa nosso meio artístico.

Talvez, como contrapartida, passa-se a discutir muito a Universidade. Sim, Salvador é uma cidade na qual a relação entre artistas e Universidade - pública - é muito mais presente do que numa cidade como São Paulo. Não temos a instituição mercado, mas temos a instituição universidade como instituição aparentemente capaz de por meio de seus processos seletivos para pós-graduação e concursos públicos para professores, atribuir um valor aos artistas e pesquisadores em arte ou ainda, como um dos poucos espaços onde é possível pensar um pouco a arte.

A discussão se transforma numa sucessão de depoimentos, a tensão começa a se dissolver. Os relatos pessoais ganham o tom do tradicional hábito de contar “causos”, talvez como um antídoto contra a esterilidade que a cada dois anos ameaça tomar posse do grande evento que acontece no prédio modernista.

texto: Rosa Gabriella de Castro Gonçalves

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Notas

1 Luis Pérez-Oramas: The Poetic &The Bienal, in Flash Art, vol. XLIV, No 278, Maio/ Junho 2011, p. 88.


2 MERLEAU-PONTY, Maurice. “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, in O Olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 67-119. p. 72.
 

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